quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Manifesto Público de Organizações de Direitos Humanos

Invasão de Favela - Acrílica sobre tela, 68x100cm - Rio, 2007



Há três semanas, as favelas do Alemão e da Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, se tornaram o palco de uma suposta “guerra” entre as forças do “bem” e do “mal”. A “vitória” propagada de forma irresponsável pelas autoridades – e amplificada por quase todos os grandes meios de imprensa – ignora um cenário complexo e esconde esquemas de corrupção e graves violações de direitos que estão acontecendo nas comunidades ocupadas pelas forças policiais e militares. Mais que isso, esta perspectiva rasa – que vende falsas “soluções” para os problemas de segurança pública no país – exclui do debate pontos centrais que inevitavelmente apontam para a necessidade de profundas reformas institucionais.

Desde o dia 28 de novembro, organizações da sociedade civil realizaram visitas às comunidades do Alemão e da Vila Cruzeiro, onde se depararam com uma realidade bastante diferente daquela retratada nas manchetes de jornal. Foram ouvidos relatos que denunciam crimes e abusos cometidos por equipes policiais. São casos concretos de tortura, ameaça de morte, invasão de domicílio, injúria, corrupção, roubo, extorsão e humilhação. As organizações ouviram também relatos que apontam para casos de execução não registrados, ocultação de cadáveres e desaparecimento.

Durante o processo, a sensação de insegurança e medo ficou evidente. Quase todos os moradores demonstraram temor de sofrerem represálias e exigiram repetidamente que o anonimato fosse mantido. E foi assim, de forma anônima, que os entrevistados compartilharam a visão de que toda a região ocupada está sendo “garimpada” por policiais, no que foi constantemente classificado como a “caça ao tesouro” do tráfico.

A caça ao tesouro

É um escândalo: equipes policiais de diferentes corporações, de diferentes batalhões, se revezam em busca do dinheiro, das jóias, das drogas e das armas que criminosos teriam deixado para trás na fuga; em lugar de encaminhar para a delegacia tudo o que foi apreendido, as equipes estão partilhando entre elas partes valiosas do “tesouro”. Aproveitando-se do clima de “pente fino”, agentes invadem repetidamente as casas e usam ameaças e técnicas de tortura como forma de arrancar de moradores a delação dos esconderijos do tráfico. Não bastasse isso, praticam a extorsão e o roubo de pequenas quantias e de telefones celulares, câmeras digitais e outros objetos de algum valor.

Apesar deste quadro absurdo, o governo do estado do Rio de Janeiro tenta mais uma vez esvaziar e desviar o debate, transformando um momento de crise em um momento triunfal das armas do Estado. Nem as denúncias que chegaram às páginas de jornais – como, por exemplo, as que apontam para a fuga facilitada de chefes do tráfico – foram respondidas e investigadas. Independente disso, os relatos que saem do Alemão e da Vila Cruzeiro escancaram um fato que jamais pode ser ignorado na discussão sobre segurança pública no Rio de Janeiro: as forças policiais exercem um papel central nas engrenagens do crime. Qualquer análise feita por caminhos fáceis e simplificadores é, portanto, irresponsável. E muitas vezes, sem perceber, escorregamos para estas saídas.

Direcionar a “culpa” de forma individualizada, por exemplo, e fazer a separação imaginária entre “bons” e “maus” policiais é uma das formas de se esquivar de debates estruturais. Penalizar o policial não altera em nada o cenário e não impede que as engrenagens sigam funcionando. Nosso papel, neste sentido, é avaliar os modelos políticos e as falhas do Estado que possibilitam a perversão da atividade policial. Somente a partir deste debate será possível imaginar avanços concretos.

Diante do panorama observado após a ocupação do Alemão, as organizações de direitos humanos cobram a responsabilidade dos Governos e exigem que o debate sobre a reforma das polícias seja retomado de forma objetiva. Nossa intenção aqui não é abarcar todos os muitos aspectos desta discussão, mas é fundamental indicarmos alguns aspectos que achamos essenciais.

Falta de transparência e controle externo

A falta de rigor do Estado na fiscalização da atuação de seus agentes, a falta de transparência nos dados de violência, e, principalmente, a falta de controle externo das atividades policiais são fatores que, sem dúvida, facilitam a ação criminosa de parte da polícia – especialmente em comunidades pobres, distantes dos olhos da classe média e das lentes da mídia. E os acontecimentos das últimas semanas realmente nos dão uma boa noção de como isso acontece.

Apesar dos insistentes pedidos de entidades e meios de imprensa, até hoje, não se sabe de forma precisa quantas pessoas foram mortas em operações policiais desde o dia 22. Não se sabe tampouco quem são esses mortos, de que forma aconteceu o óbito, onde estão os corpos ou, ao menos, se houve perícia, e se foi feita de modo apropriado. A dificuldade é a mesma para se conseguir acesso a dados confiáveis e objetivos sobre número de feridos e de prisões efetuadas. As ações policiais no Rio de Janeiro continuam escondidas dentro de uma caixa preta do Estado.

Na ocupação policial do Complexo do Alemão em 2007, a pressão política exercida por parte deste mesmo coletivo de organizações e movimentos viabilizou, com a participação fundamental da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, um trabalho independente de perícia que confirmou que grande parte das 19 mortes ocorridas em apenas um dia tinham sido resultado de execução sumária. Foram constatados casos com tiros à queima roupa e pelas costas, disparados de cima para baixo, em regiões vitais, como cabeça e nuca. Desta vez, não se sabe nem quem são, quantos são e onde estão os corpos dos mortos..

Para que se tenha uma ideia, em uma favela do Complexo do Alemão representantes das organizações estiveram em uma casa completamente abandonada. No domingo, dia 28, houve a execução sumária de um jovem. Duas semanas depois, a cena do homicídio permanecia do mesmo jeito, com a casa ainda revirada e, ao lado da cama, intacta, a poça de sangue do rapaz morto. Ou seja, agentes do Estado invadiram a casa, apertaram o gatilho, desceram com o corpo em um carrinho de mão, viraram as costas e lavaram as mãos. Não houve trabalho pericial no local e não se sabe de nenhuma informação oficial sobre as circunstâncias da morte. Provavelmente nunca saberemos com detalhes o que de fato aconteceu naquela casa.

“A ordem é vasculhar casa por casa...”

Por outro lado, o próprio Estado incentiva o desrespeito às leis e a violação de direitos quando informalmente instaura nas regiões ocupadas um estado de exceção. Os casos de invasão de domicílio são certamente os que mais se repetiram no Alemão e na Vila Cruzeiro. Foi o próprio coronel Mario Sérgio Duarte, comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro, quem declarou publicamente que a “ordem” era “vasculhar casa por casa”, insinuando ainda que o morador que tentasse impedir a entrada dos policiais seria tratado como suspeito. Mario Sérgio não apenas suprimiu arbitrariamente o artigo V da Constituição, como deu carta-branca à livre atuação dos policiais.

Em qualquer lugar do mundo, a declaração do coronel seria frontalmente questionada. Mas a naturalidade com que a fala foi recebida por aqui reflete uma construção histórica que norteia as ações de segurança pública do estado do Rio de Janeiro e que admite a favela como território inimigo e o morador como potencial criminoso. Em comunidades pobres, o discurso da guerra abre espaço para a relativização e a supressão dos direitos do cidadão, situação impensável em áreas mais nobres da cidade. De fato, a orientação das políticas de sucessivos governos no Rio de Janeiro tem sido calcada em uma visão criminalizadora da pobreza.

Em meio a esse caldo político, as milícias formadas por agentes públicos – em especial por policiais – continuam crescendo, se organizando como máfia por dentro da estrutura do Estado e dominando cada vez mais bairros e comunidades pobres no Rio de Janeiro. No Alemão e na Vila Cruzeiro, comenta-se que parte das armas desviadas por policiais estaria sendo incorporadas ao arsenal destes grupos. Especialistas avaliam com bastante preocupação a forma como o crime está se reorganizando no estado.

Mas isto continua tendo importância secundária na pauta dos Governos. De olhos fechados para os problemas estruturais do aparato estatal de segurança, seguem apostando em um modelo militarizado que não é direcionado para a desarticulação das redes do crime organizado e do tráfico de armas e que se mostra extremamente violento e ineficaz.

Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 2010.

Assinam:

Justiça Global
Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência
Conselho Regional de Psicologia – RJ
Grupo Tortura Nunca Mais - RJ
Instituto de Defensores de Direitos Humanos
Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis

quarta-feira, 6 de outubro de 2010



Augusto Boal– Teatrólogo

Forum Social Mundial 2009, Belém do Pará

       A mídia costuma publicar só o que é espetacular, sensacional, mesmo que tenha que esconder a verdade. Hoje, fala-se mais da cor da pele de Barack Obama do que do seu projeto político, como ontem falou-se mais dos seios da Carla Bruni do que das idéias direitistas do seu marido Sarkosy.
       A mídia tem dono, e reflete as opiniões do seu proprietário: o Fórum Social Mundial não tem dono, e deve refletir as nossas.
       Foro, Fórum, significa etimologicamente a praça pública, onde se pode discutir livremente. Este nosso Foro é mundial e deve, portanto, discutir os assuntos do mundo.
       Temos que saudar o fim da era Bush e seus parceiros, mas ficar atentos à nova era que começa. Aplaudir os primeiros atos de Barack Obama, mas analisá-los com cuidado. Aplaudir sua decisão de fechar Guantânamo, mas lembrar que isso não basta: é necessário restituir Guantânamo ao seu legítimo dono, que é o povo cubano. Aplaudir a ordem de acabar com a tortura, mas lamentar que os torturadores não sejam punidos por esse crime de lesa-humanidade e continuem nos seus postos de comando. Aplaudir o desejo do novo presidente em dialogar com todos os países, mas explicar que não queremos, como ele promete ou ameaça, não queremos ver o seu país liderando o mundo - essa tarefa não compete nem aos Estados Unidos nem ao Paraguai, mas sim à Organização das Nações Unidas que para isso foi criada e tantas vezes tem sido desrespeitada pelo país de Barack Obama.
       O Fórum é social, e temos que falar do genocídio dos palestinos. Temos que separar, de um lado, o cruel governo de Israel e, de outro, as centenas de milhares de judeus que com ele não concordam. Não devemos cometer a injustiça que se fez com os alemães, pensando que todos fossem nazistas, quando muitos morreram lutando contra Hitler e seus asseclas.
       Milhares de judeus, dentro e fora de Israel, condenam e se envergonham do que fez e faz o seu governo, que representa tão somente aqueles que o elegeram, mas não o judaismo. Dentro de Israel existem organizações como a dos Combatentes Pela Paz, de Chen Allon, que condenam a invasão e denunciam seus crimes. Tenho orgulho em dizer que, para isso, usam o Teatro do Oprimido entre outras formas de combate.
       No Oriente Médio já se inverteu a distribuição de papéis: se, ontem, Israel foi o pequenino David, hoje é o gigante Golias, filisteu. O novo Golias, apoiado pelos Estados Unidos, em 22 dias matou mais de 300 crianças e centenas mulheres e homens, civis ou combatentes. Eu chorei vendo a fotografia de um menino, um pequenino David palestino, jogando pedras contra um tanque de guerra. Se a lenda de David e Golias, ontem, foi apenas lenda, a história de Golias e David, hoje, é triste realidade: os 1.300 mortos ainda estão sendo retirados dos escombros, sem as solenes pompas fúnebres dos 13 soldados israelis. O Fórum e o mundo não podem esquecer esse crime antes mesmo que sejam enterradas suas vítimas.
       Nosso Fórum é pluralista, e deve se manifestar contra o colonialismo italiano que ofende a nossa soberania, que tenta interferir nas decisões da nossa Justiça, como está sendo o caso da concessão de asilo a Cesare Battisti. Existe uma lei brasileira que proibe a extradição de pessoas condenadas em seus países à pena de morte ou à prisão perpétua. É este o caso, é esta a lei! O ministro Tarso Genro apenas cumpriu a lei - a lei brasileira. O presidente Lula foi claro explicando aos italianos as sólidas bases da nossa decisão, mas parece que eles não entenderam, nem disso são capazes. Por quê?
       A Itália, que foi o berço do fascismo e deveria ser também a sua sepultura, mostra agora que a ideologia colonialista ainda está viva e pretende anular decisões soberanas do Brasil, invadindo o nosso Judiciário e querendo nos ensinar a diplomacia da obediência e da submissão. Temos que repudiar essa ofensa e libertar o prisioneiro!
       Nosso Fórum é social, e a economia também. A maioria dos países que estão em crise, ou dela se aproximam, sempre disseram não ter dinheiro para melhorar a Educação, a Saúde, a Previdência Social. De repente, para socorrer seguradoras, bancos e montadoras, esses governos descobriram que tinham bilhões e trilhões de dólares, euros, iens e libras. Nosso Fórum tem a obrigação moral de interrogar os senhores da Davos: de onde veio esse dinheiro? Quem os escondia? Quanto sobrou? Onde estão?
       O nosso Fórum Social também é brasileiro e é camponês: devemos saudar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, MST, que é o mais democrático e bem organizado movimento de massas que o Brasil já teve, e que completa agora 25 anos de lutas pela terra, luta que continua.
       O Fórum Social Mundial não é daqueles que dizem Hay Gobierno? Soy Contra, e porque assim não é, deve se alegrar em receber tantos presidentes de tantas Repúblicas sulamericanas juntos neste evento: Evo, Correa, Kirchner, Chavez, Lugo e Lula. Nunca se viu fraternidade igual. Queremos agora ver os resultados concretos dessa irmandade.
       Devemos, muito cordialmente, lembrar aos nossos presidentes que a Política não é a arte de fazer o que é possível fazer, mas sim a arte de tornar possível o que é necessário fazer!
       Caminhar não é fácil! As sociedades se movem pelo confronto de forças, não pelo bom senso e justiça. Temos que avançar e, a cada avanço, avançar mais, na tentativa de humanizar a Humanidade. Não existe porto seguro neste mundo, porque todos os portos estão em alto mar e o nosso navio tem leme, não tem âncoras. Navegar é preciso, e viver ainda mais preciso é, porque navegar é viver, viver é navegar!
       Eu sou homem de teatro e não posso deixar de falar de Arte e Cultura quando falo de Política, porque a Política é uma Arte que a Cultura produz.
       Temo que, mesmo entre nós, muita gente ainda pense em arte como adorno, e nós dizemos: não é! A Palavra não é absoluta, Som não é ruído, e as Imagens falam. São esses os três caminhos reais da Estética para o entendimento: a palavra, o som e a imagem. São também os canais de dominação pois estão os três nas mãos dos opressores, não dos oprimidos: a Palavra dos jornais, o Som das rádios, as Imagens da TV e do cinema estadunidense, dominam nossos meios de comunicação e invadem nossos cérebros com seu pensamente único, seus projetos imperiais e suas mercadorias.
       Acabou-se o tempo da inocência... o tempo da contemplação já não é mais. Temos que agir!
       Palavra, imagem e som, que hoje são canais de opressão, devem ser conquistados pelos oprimidos como formas de libertação. Não basta consumir Cultura: é necessário produzi-la. Não basta gozar arte: necessário é ser artista! Não basta produzir idéias: necessário é transformá-las em atos sociais, concretos e continuados.
       A Estética é um instrumento de libertação.
       Eu felicito o nosso Ministério da Cultura pela criação de mais de mil Pontos de Cultura no Brasil inteiro, onde o povo tem acesso não só à Cultura alheia, mas aos meios de produzir sua própria Cultura sem servilismos, sua Arte sem modismos, porque entendemos que Arte e Cultura são formas de combate tão importantes como a ocupação de terras improdutivas e a organização política solidária.
       Sonho com o dia em que no Brasil inteiro, e no inteiro mundo, haverá em cada cidade, em cada povoado ou vilarejo, um Ponto de Cultura onde a cidadania possa criar e se expressar pela arte, afim de compreender melhor a realidade que deve transformar. Nesse dia, finalmente, terá nascido a Democracia que, hoje, só existe em Fóruns como este!
       Ser cidadão, meus companheiros, não é viver em sociedade: é transformar a sociedade em que se vive!
       Com a cabeça nas alturas, os pés no chão, e mãos à obra!
       Muito obrigado.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Manifesto dos Economistas Estarrecidos

A estrutura do documento dos “economistas estarrecidos” são 10 itens, chamados pelos autores de “falsas evidências”, a partir dos quais eles pretendem demonstrar a ineficiência e a injustiça das propostas ortodoxas. E propõem medidas distintas para buscar solucionar a grave crise por que passam aqueles países. São elas:


Falsa evidência n° 1 – “Os mercados financeiros são eficientes”. Não, a crise demonstrou que os mercados não são eficientes, no sentido de apontar os equívocos de determinadas opções e quadros de irracionalidade. Podem ser eficientes na lógica do capital, mas não na lógica do social.

Falsa evidência n° 2 – “Os mercados financeiros são favoráveis ao crescimento econômico”. Não, os mercados financeiros têm uma lógica de atender aos seus próprios interesses, mesmo que isso ocorra às custas dos interesses da maioria da população.

Falsa evidência n° 3 – “Os mercados são bons avaliadores da solvência dos Estados”. Não, os mercados operam com espírito de especulação e buscam ofuscar realidades quando de seu interesse ou provocar crises quando for necessário.

Falsa evidência n° 4 – “A elevação da dívida pública é conseqüência de um aumento nas despesas”. Não, a maior responsável pelo aumento da dívida pública é a política de concessão de isenções fiscais e benefícios tributários para as grandes empresas. Até pouco antes da eclosão da crise, as contas públicas dos Estados membros da UE mostravam um certo controle da questão fiscal.

Falsa evidência n° 5 – “É necessário reduzir as despesas para reduzir a dívida pública”. Não, a solução é justamente manter as políticas de despesas públicas em áreas como saúde, educação, previdência, auxílio desemprego e moradia, ente outras, para garantir que a saída da crise a médio prazo não afete a capacidade dos países nesse tipo de quesito básico.

Falsa evidência n° 6 – “A dívida pública transfere o custo dos excessos atuais para as gerações futuras”. Não, o documento reforça o argumento de que a economia de um país não pode ser tratada como a economia de uma família. O que se faz necessário é alterar a transferência dos beneficiários da crise. Não mais favorecer os especuladores e as grandes empresas, e sim oferecer apoio aos trabalhadores e à maioria da população.

Falsa evidência n° 7 – “É necessário tranqüilizar os mercados financeiros para conseguir financiar a dívida pública”. Não, a crise atual não é apenas resultado da intranqüilidade do mercado financeiro. Pelo contrário, os Bancos Centrais dos países da EU são proibidos de financiarem seus próprios governos. Estes são obrigados a recorrer a bancos privados e pagar taxas de juros exorbitantes por tais operações.

Falsa evidência n° 8 – “A direção atual da União Européia defende o modelo social europeu”. Não, o Manifesto reconhece que existem vários modelos de construção européia. Mas afirma que a hegemonia atual da direção em Bruxelas está ancorada em uma visão excessivamente liberal da dinâmica econômica. Dessa forma, faz-se necessária a reafirmação de outra estratégia de construção européia, com maior foco no social e com medidas que evitem que a liberdade absoluta de fluxo de capitais para os espaços exteriores à EU continue a provocar as atuais conseqüências negativas da crise.

Falsa evidência n° 9 – “O euro é um escudo protetor contra crise”. Não, infelizmente aquilo que deveria atuar como instrumento de proteção não se comportou de tal maneira. Apesar da união monetária, o comportamento dos países europeus é muito díspar, de forma que cada um deles acaba adotando uma estratégia para o enfrentamento da crise. Apenas a existência da moeda unitária não é suficiente. O caminho passa por uma maior centralização na adoção de medidas comuns e no estabelecimento de um sistema de compensações das trocas comerciais entre os países.

Falsa evidência n° 10 – “A crise grega possibilitou finalmente avançar rumo a um governo econômico e a uma verdadeira solidariedade européia”. Não, a crise grega apenas serviu como alerta para a necessidade de medidas contra a ampliação da crise. No entanto, as ações propostas pela Comissão Européia não reforçaram as medidas de solidariedade na direção daquele País. Pelo contrário, as exigências impostas ao governo grego foram sempre no sentido de redução dos gastos públicos de caráter social e sem perspectivas de recuperação no médio e longo prazos.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Conferência Mundial dos Povos sobre o Câmbio Climático e os Direitos da Mãe Terra de Acordo com os Povos




Hoje, nossa Mãe Terra está ferida e o futuro da humanidade está em perigo.

Ao se tornar realidade o aquecimento global em mais de 2%, ao que nos conduziria o chamado “Entendimento de Copenhague”, existe 50% de possibilidade de que os danos causados à nossa Mãe Terra sejam totalmente irreversíveis. Entre 20 e 30% das espécies estariam em perigo de desaparecer. Grandes extensões de florestas seriam afetadas, as secas e inundações atingiriam diferentes regiões do planeta, aumentariam os desertos e se agravaria o derretimento dos pólos. Os glaciares dos Andes e do Himalaia seriam afetados. Muitos Estados insulares desapareceriam e a África sofreria um aumento de temperatura de mais de 3°C. A produção de alimentos no mundo seria reduzida, com efeitos catastróficos para a sobrevivência dos habitantes de vastas regiões do planeta. Aumentaria de forma dramática o número de famintos no mundo, que já passam de um bilhão e vinte milhões de pessoas.

As corporações e os governos dos países chamados “mais desenvolvidos”, em cumplicidade com um segmento da comunidade científica, nos fazem discutir o câmbio climático como se fosse um problema reduzido à elevação da temperatura, sem questionar suas causas, originadas no sistema capitalista.

Enfrentamos a crise terminal do modelo civilizatório patriarcal, baseado na sujeição e destruição de seres humanos e da natureza que se acelerou com a revolução industrial.

O sistema capitalista nos tem imposto uma lógica de competição, progresso e crescimento ilimitado. Este regime de produção e consumo busca o lucro sem limites, separando o ser humano da natureza, estabelecendo sobre ela uma lógica de dominação, convertendo tudo em mercadoria, a água, a terra, o genoma humano, as culturas ancestrais, a biodiversidade, a justiça, a ética, os direitos dos povos, a morte e a própria vida.

Sob o capitalismo, a Mãe Terra foi convertida em mera fonte de matérias primas e os seres humanos, em meios de produção e consumidores, em pessoas que valem pelo que têm e não pelo que são.

O capitalismo requer uma potente indústria militar para seu processo de acumulação e o controle de territórios e recursos naturais, reprimindo a resistência dos povos. Trata-se de um sistema imperialista de colonização do planeta.

A humanidade está diante de uma encruzilhada. Continuar pelo caminho do capitalismo, da depredação e da morte, ou empreender o caminho da harmonia com a natureza e do respeito à vida.

Requeremos forjar um novo sistema que restabeleça a harmonia com a natureza e entre os seres humanos. Só pode haver equilíbrio com a natureza se houver eqüidade entre os seres humanos.

Recomendamos aos povos do mundo a recuperação, revalorização e fortalecimento dos conhecimentos, sabedorias e práticas ancestrais dos Povos Indígenal, afirmados na vivência e proporta de “viver bem”, reconhecendo a Mãe Terra como um ser vivo, com o qual temos uma relação indivisível, interdependente, complementar e espiritual.

Para enfrentar o câmbio climático, devemos reconhecer a Mãe Terra como a fonte da vida e construir um novo sistema, baseado nos seguintes princípios:

- harmonia e equilíbrio entre todos e com tudo;

- complementaridade, solidariedade e eqüidade;

- bem-estar coletivo e satisfação das necessidades fundamentais de todos, em harmonia com a Mãe Terra;

- respeito aos direitos da Mãe Terra e aos direitos humanos;

- reconhecimento do ser humano pelo que é, não pelo que tem;

- eliminação de toda forma de colonialismo, imperialismo e intervencionismo;

- paz entre os povos e com a Mãe Terra.

O modelo que propomos não é de desenvolvimento destrutivo, nem ilimitado. Os países precisam produzir bens e serviços para satisfazer as necessidades fundamentais de suas populações, mas de nenhuma forma podem continuar neste caminho de desenvolvimento, no qual os países mais ricos têm uma pegada ecológica cinco vezes maior do que o planeta é capaz de suportar. Na atualidade já se excedeu em mais de 30% a capacidade do planeta para se regenerar. Neste ritmo de superexploração de nossa Mãe Terra, seriam necessários dois planetas, para 2030.

Num sistema interdependente, no qual os seres humanos somos um dos seus componentes, não é possível reconhecer direitos apenas à parte humana sem provocar um desequilíbrio em todo o sistema. Para garantir os direitos humanos e restabelecer a harmonia com a natureza, é necessário reconhecer e aplicar efetivamente os direitos da Mãe Terra.

Para isso, propomos o projeto adjunto de Declaração Universal de Direitos da Mãe Terra, no qual são consignados:

- Direito à vida e a existir;

- Direito a ser respeitada;

- Direito à continuação dos seus ciclos e processos vitais, livre de alterações humanas;

- Direito a manter sua identidade e integridade como seres diferenciados, auto-regulados e interrelacionados;

- Direito à água como fonte de vida;

- Direito ao ar limpo;

- Direito à saúde integral;

- Direito a estar livre de contaminação e poluição, de resíduos tóxicos e radioativos;

- Direito a não ser alterada geneticamente e modificada em sua estrutura, ameaçando sua integridade ou funcionamento vital e saudável;

- Direito a uma restauração plena e imediata pelas violações aos direitos reconhecidos nesta Declaração, causadas pelas atividades humanas.

A visão compartilhada é estabilizar as concentrações de gases de efeito estufa para fazer efetivo o Artigo 2 da Convenção Marco das Nações Unidas sobre Câmbio Climático, que determina “a estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera em um nível que impeça interferências antropogênicas perigosas para o sistema climático”. Nossa visão é, sobre a base do princípio das responsabilidades históricas comuns, mas diferenciadas, exigir que os países desenvolvidos se comprometam com metas quantificadas de redução de emissões que permitam reverter as concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera a 300 ppm e, assim, limitar o incremento da temperatura média global a um nível máximo de 1ºC.

Enfatizando a necessidade de ação urgente para realizar esta visão, e com o apoio dos povos, movimentos e países, os países desenvolvidos deverão se comprometer com metas ambiciosas de redução de emissões que permitam alcançar objetivos a curto prazo, mantendo nossa visão a favor do equilíbrio do sistema climático da Terra, de acordo com o objetivo último da Convenção.

A “visão compartilhada” para a “Ação Cooperativa a Longo Prazo” não deve se reduzir na negociação do câmbio climático a definir o limite no aumento da temperatura e a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, mas compreender, de maneira integral e equilibrada, um conjunto de medidas financeiras, tecnológicas, de adaptação, de desenvolvimento de capacidades, de padrões de produção, consumo e outras, essenciais como o reconhecimento dos direitos da Mãe Terra, para restabelecer a harmonia com a natureza.

Os países desenvolvidos, principais causadores da mudança climática, assumindo sua responsabilidade histórica e atual, devem reconhecer e honrar sua dívida climática, em todas suas dimensões, como base para uma solução justa, efetiva e científica do problema do câmbio climático. Neste marco, exigimos aos países desenvolvidos que:

- Restabeleçam aos países em desenvolvimento o espaço atmosférico, que está ocupado por suas emissões de gases de efeito estufa. Isto implica a descolonização da atmosfera, mediante a redução e reabsorção das suas emissões.

- Assumam os custos e as necessidades de transferência de tecnologia dos países em desenvolvimento, pela perda de oportunidades de desenvolvimento, por viver num espaço atmosférico restrito.

- Tornem-se responsáveis pelas centenas de milhões de pessoas obrigadas a migrar pelas mudanças climáticas que provocaram, eliminem suas políticas restritivas de imigração e ofereçam aos imigrantes uma vida digna e com todos os direitos de seus países.

- Assumam a dívida de adaptação relacionadas aos impactos climáticos nos países em desenvolvimento, provendo os meios para prevenir, minimizar e atender aos danos que surgem das suas excessivas emissões.

- Honrem estas dívidas como parte de uma dívida maior com a Mãe Terra, adotando e aplicando a Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra nas Nações Unidas.

O enfoque deve ser não somente de compensação econômica, mas, principalmente, de justiça restaurativa, ou seja, restituindo a integridade às pessoas e aos membros que formam uma comunidade de vida na Terra.

Deploramos a tentativa, por um grupo de países, de anular o Protocolo de Kioto, o único instrumento legalmente vinculante específico para a redução das emissões de gases de efeito estufa dos países desenvolvidos.

Advertimos o mundo que, não obstante a obrigação legal de redução das emissões dos países desenvolvidos, estas emissões cresceram, entre 1990 e 2007, em 11,2%.

Por causa do consumo ilimitado, os Estados Unidos aumentaram suas emissões de GEE em 16,8% durante o período de 1990 a 2007, emitindo em média entre 20 e 23 toneladas anuais de CO2 por habitante, o que representa mais de 9 vezes as emissões correspondentes à média de um habitante do terceiro mundo, e mais de 20 vezes as emissões de um habitante da África Sub-Saariana.

Rechaçamos, de maneira absoluta, o ilegítimo “Entendimento de Copenhague”, que permite a estes países desenvolvidos ofertar reduções insuficientes de gases de efeito estufa, baseado em compromissos voluntários e individuais que violam a integridade ambiental da Mãe Terra, conduzindo-nos a um aumento por volta de 4ºC.

A próxima Conferência Sobre Câmbio Climático a se realizar no final do ano, no México, deve aprovar a emenda ao Protocolo de Kioto, para o segundo período de compromissos a se iniciarem de 2013 a 2017, na qual os países desenvolvidos devem se comprometer com reduções domésticas significativas de, pelo menos, 50% em relação ao ano base de 1990, sem incluir mercados de carbono ou outro sistema de desvio que mascare o descumprimento das reduções reais de GEE.

Requeremos estabelecer, primeiro, uma meta para o conjunto dos países desenvolvidos, para depois realizar a assinatura individual para cada país desenvolvido, no marco de uma comparação de esforços entre cada um deles, mantendo, assim, o sistema do Protocolo de Kioto para as reduções das emissões.

Os Estados Unidos da América, em sua posição de único país da Terra, do Anexo 1, que não ratificou o Protocolo de Kioto, tem uma responsabilidade significativa perante todos os povos do mundo, pelo que deve ratificar o Protocolo e comprometer-se a respeitar e dar cumprimento aos objetivos de redução de emissões, na escala de toda sua economia.

Os povos temos os mesmos direitos de proteção diante dos impactos do câmbio climático e rechaçamos a noção de adaptação à mudança entendida como a resignação aos impactos provocados pelas emissões históricas dos países desenvolvidos, que devem adaptar seus estilos de vida e de consumo, diante desta emergência planetária. Somos forçados a enfrentar os impactos do câmbio climático, considerando a adaptação como um processo, não como uma imposição, além de uma ferramenta para contestá-los, demonstrando que é possível viver em harmonia, com um modo de vida diferente.

Se faz necessário construir um Fundo de Adaptação, exclusivo para enfrentar o câmbio climático, como parte de um mecanismo financeiro manejado e conduzido de maneira soberana, transparente e eqüitativa por nossos Estados. Este Fundo deve priorizar os impactos e seus custos nos países em desenvolvimento, as necessidades geradas por estes impactos e registrar e monitorar o apoio dos países desenvolvidos. Deve se criar um mecanismo para ressarcimento dos danos passados e futuros, pela perda de oportunidades, e reposição, por eventos climáticos extremos e graduais, além de custos adicionais eventualmente necessários, se nosso planeta ultrapassa os limites ecológicos, assim como os impactos que estão impedindo o direito de viver bem.

O “Entendimento de Copenhague”, imposto por alguns Estados aos países em desenvolvimento, além de oferecer recursos insuficientes, pretende dividir e enfrentar os povos e extorquir seus países, condicionando o acesso aos recursos de adaptação a medidas de moderação. Também estabelece como inaceitável que, nos processos de negociação internacional, se categorize os países em desenvolvimento pela sua vulnerabilidade ao câmbio climático, gerando disputas, desigualdades e segregação entre eles.

O imenso desafio que enfrentamos, como humanidade, para deter o aquecimento global e esfriar o planeta, só será possível com uma profunda transformação na agricultura para um modelo sustentável de produção agrícola camponesa e indígena/originária e outros modos e práticas ancestrais ecológicas que contribuam para solucionar o problema da mudança climática e assegurem a Soberania Alimentar, entendida como o direito dos povos de controlar suas próprias sementes, terras, água e a produção de alimentos, garantindo (através da produção local e culturalmente apropriada, em harmonia com a Mãe Terra) o acesso dos povos a alimentos suficientes, variados e nutritivos em complementação com a Mãe Terra e aprofundando a produção autônoma – participativa, comunitária e compartilhada – de cada nação e cada povo.

O Câmbio Climático já está produzindo profundos impactos sobre a agricultura e os modos de vida dos povos originários e camponeses do mundo e estes impactos se irão agravando, no futuro.

O agro-negócio (através do seu modelo social, econômico e cultural de produção capitalista globalizada) e sua lógica de produção de alimentos para o mercado e não para cumprir com o direito à alimentação, é uma das causas principais do câmbio climático. Suas ferramentas tecnológicas, comerciais e políticas aprofundam a crise climática e aumenta a fome no planeta. Por isso, rechaçamos os Tratados de Livre Comércio, Acordos de Associação e toda forma de aplicação dos Direitos de Propriedade Intelectual sobre a vida, os pacotes tecnológicos atuais (agro-químicos, transgênicos) e aqueles que se oferece como falsas soluções (agrocombustíveis, geo-engenharia, nanotecnologia, tecnologia Terminator e similares) que apenas agudizarão a crise atual.

Ao mesmo tempo, denunciamos que este modelo capitalista impõe mega-projetos de infraestrutura, invade territórios com projetos extrativistas, privatiza e mercantiliza a água e militariza os territórios, expulsando os povos originários e camponeses, impedindo a Soberania Alimentar e aprofundando a crise sócio-ambiental.

Exigimos o reconhecimento dos direitos de todos os povos, dos seres vivos e da Mãe Terra ao acesso e uso da água e apoiamos a proposta do governo da Bolívia para reconhecer a água como um Direito Humano Fundamental.

A definição de floresta utilizada nas negociações da Convenção Marco das Nações Unidas sobre Câmbio Climático, que inclui plantações, é inaceitável. Os monocultivos não são bosques. Portanto, exigimos uma definição, para fins de negociação, que reconheça as florestas nativas, a selva e a diversidade dos ecossistemas da terra.

A Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas deve ser plenamente reconhecida, implementada e integrada nas negociações do Câmbio Climático. A melhor estratégia e ação para evitar o desflorestamento e a degradação – e proteger as florestas nativas e a selva – é reconhecer e garantir os direitos coletivos das terras e territórios, considerando, especialmente, a localização da maioria dos bosques e selvas em territórios de povos e nações indígenas, comunidades camponesas e tradicionais.

Reprovamos os mecanismos de mercado – como a REDD, Redução de Emissões pelo Desmatamento e Degradação, e suas versões + e ++ - que estão violando a soberania dos povos e seu direito ao consentimento livre, prévio e informado, a soberania de Estados Nacionais, e viola, também, os direitos, usos e costumes dos povos e os direitos da natureza.

Os países contaminadores estão obrigados a transferir, de maneira direta, os recursos econômicos e tecnológicos para pagar a restauração e a manutenção dos bosques e selvas, em favor dos povos e estruturas orgânicas ancestrais indígenas, originárias e camponesas. Esta deverá ser uma compensação direta, adicional às fontes de financiamento assumidas em compromisso pelos países desenvolvidos, fora do mercado de carbono e nunca servindo como compensação de carbono. Instamos os países a interromperem as iniciativas baseadas em mecanismos de mercado para matas e selvas, que propõem resultados inexistentes e condicionados. Exigimos dos governos um programa mundial de restauração de matas nativas e selvas, dirigido e administrado pelos povos, implementando sementes florestais, de frutos e de flora autóctone. Os governos devem eliminar as concessões florestais e apoiar a conservação do petróleo sob a terra, detendo urgentemente a exploração de hidrocarbonetos nas selvas.

Exigimos dos Estados que reconheçam, respeitem e garantam a efetiva aplicação dos padrões internacionais de direitos humanos e os direitos dos povos indígenas, em particular a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, no Convênio 169 da OIT, entre outros instrumentos pertinentes, no marco das negociações, políticas e medidas para resolver os desafios impostos pelo câmbio climático. Em especial, demandamos dos Estados que reconheçam juridicamente a pré-existência do direito sobre nossos territórios, terras e recursos naturais, para possibilitar e fortalecer nossas formas tradicionais de vida e contribuir efetivamente para a solução do câmbio climático.

Demandamos a plena e efetiva aplicação do direito à consulta, à participação e ao consentimento prévio, livre e informado dos povos indígenas, em todos os processos de negociação, assim como no planejamento e implementação das medidas relativas ao câmbio climático.

Atualmente, a degradação do meio ambiente e o câmbio climático alcançaram níveis críticos, sendo uma das principais conseqüências a migração interna, assim como internacional. Conforme algumas projeções, em 1995 existiam ao redor de 25 milhões de migrantes climáticos. No presente, estima-se em 50 milhões, e as projeções para 2050 são de 200 milhões a 1 bilhão de pessoas que serão deslocadas por conseqüência das mudanças climáticas.

Os países desenvolvidos devem assumir a responsabilidade sobre os migrantes climáticos, acolhendo-os em seus territórios e reconhecendo seus direitos fundamentais, através de convênios internacionais que contemplem a definição de migrante climático, para que todos os Estados acatem suas determinações.

Constituir um Tribunal Internacional de Consciência para denunciar, fazer visível, documentar, julgar e sancionar as violações dos direitos dos migrantes, refugiados e deslocados nos países de origem, trânsito e destino, identificando claramente as responsabilidades dos Estados, empresas e outros agentes.

O financiamento atual destinado aos países em desenvolvimento, para o câmbio climático, e a proposta do Entendimento de Copenhague, são ínfimos. Os países desenvolvidos devem comprometer um financiamento anual novo, adicional à Ajuda Oficial ao Desenvolvimento e de fonte pública, de pelo menos 6% do seu PIB, para enfrentar o câmbio climático nos países em desenvolvimento. Isto é viável, levando em conta que gastam um montante similar em defesa nacional e destinaram 5 vezes mais para resgatar bancos e especuladores em quebra, o que questiona seriamente suas prioridades mundiais e sua vontade política. Este financiamento deve ser direto, sem condicionamento e não fragilizar a soberania nacional, nem a autodeterminação das comunidades e grupos mais afetados.

Diante da ineficiência do mecanismo atual, na Conferência do México deve-se estabelecer um novo mecanismo de financiamento, que funcione sob a autoridade da Conferência das Partes da Convenção Marco das Nações Unidas sobre o Câmbio Climático, prestando contas à mesma, com uma representação significativa dos países em desenvolvimento, para garantir o cumprimento dos compromissos de financiamento dos países do Anexo 1.

Constatou-se que os países desenvolvidos aumentaram suas emissões no período de 1990 a 2007, apesar da manifestação de que a redução seria substancialmente coadjuvada por mecanismos de mercado.

O mercado de carbono transformou-se em um negócio lucrativo, mercantilizando nossa Mãe Terra. Isto não representa uma alternativa para enfrentar o câmbio climático, posto que saqueia, devasta a terra, a água e a própria vida.

A recente crise financeira demonstrou a incapacidade do mercado de regular o sistema financeiro, que é frágil e inseguro diante da especulação e a aparição de agentes intermediários. Portanto, seria uma total irresponsabilidade deixar em suas mãos o cuidado e a proteção da própria existência humana e de nossa Mãe Terra.

Consideramos inadmissível a pretensão, nas negociações em curso, de criar novos mecanismos que ampliem e promovam o mercado de carbono, uma vez que os mecanismos existentes nunca resolveram o problema do câmbio climático, nem se transformaram em ações reais e diretas na redução de gases de efeito estufa.

É imprescindível exigir o cumprimento dos compromissos assumidos pelos países desenvolvidos, na Convenção Marco das Nações Unidas sobre Câmbio Climático, a respeito do desenvolvimento e transferência de tecnologia, assim como rechaçar a “vitrine tecnológica” proposta por países desenvolvidos, que apenas comercializam a tecnologia. É fundamental estabelecer as linhas de criação de um mecanismo multilateral e multidisciplinar para o controle participativo, a gestão e a avaliação contínua do intercâmbio de tecnologias. Estas tecnologias devem ser úteis, limpas e socialmente adequadas. Da mesma forma é fundamental o estabelecimento de um fundo de financiamento para pesquisas de tecnologias apropriadas e livres de direitos de propriedade intelectual e, em particular, de patentes, que devem passar de monopólios privados, para domínio público, de livre acesso e baixo custo.

O conhecimento é universal e, por nenhum motivo, pode ser objeto de propriedade privada e de uso privativo, como tampouco suas aplicações em forma de tecnologias. É dever dos países desenvolvidos compartilhar sua tecnologia com paísses em desenvolvimento, criar centros de pesquisas para criação de tecnologias e inovações próprias, assim como defender e incentivar seu desenvolvimento e aplicação para o viver bem. O mundo deve recuperar, aprender, reaprender os princípios e enfoques do legado ancestral dos seus povos originários, para deter a destruição do planeta, assim como os conhecimentos e práticas ancestrais. E recuperar a espiritualidade, na reinserção do viver bem juntamente com a Mãe Terra.

Considerando a falta de vontade política dos países desenvolvidos para cumprir, de maneira efetiva, seus compromissos e obrigações assumidos na Convenção Marco das Nações Unidas, e diante da inexistência de uma instância legal internacional que preveja e sancione todos os delitos e crimes climáticos e ambientais que atentem contra os direitos da Mãe Terra e da humanidade, demandamos a criação de um Tribunal Internacional de Justiça Climática e Ambiental, que tenha a capacidade jurídica vinculante de prevenir, julgar e sancionar os Estados, as empresas e pessoas que, por ação ou omissão, contaminem e provoquem o câmbio climático.

Respaldar os Estados que apresentem demandas na Corte Internacional de Justiça contra os países desenvolvidos que não cumprem os seus compromissos com a Convenção Marco das Nações Unidas sobre o Câmbio Climático e o Protocolo de Kioto, incluindo seus compromissos de redução de gases de efeito estufa.

Instamos os povos a propor e promover uma profunda reforma da Organização das Nações Unidas (ONU), para que todos seus Estados membros cumpram as decisões do Tribunal Internacional de Justiça Climática e Ambiental.

O futuro da humanidade está em perigo e não podemos aceitar que um grupo de governantes de países desenvolvidos queiram decidir por todos os países, como tentaram fazer, sem conseguir, na Conferência das Partes de Copenhague. Esta decisão nos compete a todos os povos. Por isso, é necessária a realização de um Referendum Mundial, plebiscito ou consulta popular, sobre o câmbio climático, no qual todos sejamos consultados sobre o nível de reduções de emissões que devem ser feitas pelos países desenvolvidos e empresas transnacionais; os financiamentos que devem ser providos por esses países; a criação de um Tribunal Internacional de Justiça Climática; a necessidade de uma Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra; e a necessidade de mudar o atual sistema capitalista.

O processo do referendo mundial, plebiscito ou consulta popular, será fruto de um processo de preparação que assegure o desenvolvimento frutífero do mesmo.

Com a finalidade de coordenar nossas ações internacionais e implementar os resultados do presente “Acordo dos Povos”, chamamos a construir um Movimento Mundial dos Povos pela Mãe Terra, que se baseará nos princípios da complementaridade e respeito à diversidade de origem e visões de seus integrantes, constituindo-se em um espaço amplo e democrático de coordenação e articulação de ações a nível mundial.

Com tal propósito, adotamos o plano de ação mundial adjunto, para que, no México, os países desenvolvidos do Anexo 1 respeitem o marco legal vigente e reduzam suas emissões de GEE em 50% e assumam as diferentes propostas contidas neste Acordo.

Finalmente, ficou decidido realizar a 2ª Conferência Mundial dos Povos sobre o Câmbio Climático e os Direitos da Mãe Terra em 2011, como parte deste processo de construção do Movimento Mundial dos Povos pela Mãe Terra e para reagir diante dos resultados da Conferência de Câmbio Climático que será realizada no final do ano, em Cancun, México.





22 de Abril de 2010, Cochabamba, Bolivia